terça-feira, 24 de agosto de 2021

O desabafo de uma mãe cardiopata

Antes de começar a contar essa história gostaria de me apresentar. Meu nome é Kelly Boeger Keiner, tenho 39 anos, casada há 8 anos (mas juntos há 18 anos), publicitária e ex-workaholic.

 

O trabalho sempre foi uma prioridade em minha vida até outubro de 2018. Meus planos para vida pessoal ficavam em segundo plano, salvo minhas férias que eram sagradas. Tínhamos o desejo de aumentar a família, mas pelo stress do dia a dia, de um sobrepeso e da falta de tempo para buscar uma orientação médica assertiva sempre iam de desencontro a esse desejo. Eu tinha constantemente cansaços fora do comum, batimentos acelerados e muito suor. Sempre culpavam o meu sedentarismo e meu sobrepeso, que está longe de ser uma obesidade mórbida. Meu IMC era de 27,5 sendo que o normal é até 24,90, além disso eu tenho 1.84 e um porte físico maior.

 

Havia uma grande cobrança, mesmo em tom de brincadeira, dos familiares e colegas para que tivéssemos filhos. Muitas vezes preferíamos falar que não queríamos, o desgaste em explicar que não conseguíamos era maior. Quando falávamos que estávamos tentando, sempre surgia um comentário: relaxa que vocês conseguem ou vai viajar que dá certo. Claro, que não deu certo! Tentamos usar um indutor de ovulação, com o acompanhamento de uma médica, mas foram 3 meses sem resultado. Cheguei a passar em ginecologista (indicada por uma amiga) que não me examinou e só pediu para emagrecer 10 kilos e retornar. Parecia que eu estava com uma doença contagiosa que ela nem poderia se aproximar. Sai da consulta totalmente desolada, o pouco tempo que tinha disponível para minha saúde, tinha sido perdido por uma pessoa totalmente desinteressada. Depois disso, desisti.

 

Em outubro tiramos férias e fomos viajar. Fizemos uma viagem maravilhosa. No dia do meu retorno ao trabalho tive que fazer o exame médico periódico. Retornar ao trabalho já estava sendo algo muito difícil, psicologicamente falando pela pressão e stress vivido. Durante a consulta minha pressão estava nas alturas. O médico então pediu para eu consultar um cardiologista. No dia seguinte estava eu às 08h da manhã no cardiologista. Ele me examinou e disse que estava tudo normal. Relatei meus sintomas (cansaço, batimentos acelerados, suor) e ele me orientou a buscar um psiquiatra. Me lembro até hoje, dia 31 de outubro, um dia chuvoso e frio. Foi a primeira vez que estive em um psiquiatra. Meu diagnóstico: Burnout.

 

Fiquei totalmente perdida ao sair do consultório. Precisava pegar o metrô para retornar pra casa, mas nem sabia onde estava. Ele me deu um afastamento de 10 dias de trabalho e eu sem saber o que fazer. Como o trabalho sempre foi algo de extrema importância para a minha vida, parecia que o mundo estava acabando.

 

Aos poucos fui digerindo tudo aquilo e conversando muito com o meu marido, meu porto seguro. Fui avaliando tudo que abri mão ao longo da vida por conta do trabalho. Infelizmente a mulher tem uma vida útil caso queira formar uma família. Já tinha passado dos 35 anos e sabia que para a fertilidade após essa idade as chances vão reduzindo. No dia 12 de novembro tomei uma das decisões mais importantes da minha vida: pedi demissão. Enfim, eu tinha alcançado o cargo que tanto queria Gerente de MKT e Vendas, mas minha vida pessoal não estava completa.

 

No mesmo ano, meu marido conseguiu tirar mais alguns dias de férias em dezembro. Aproveitamos o período juntos para planejar o que faríamos em 2019. Decidimos que buscaríamos uma clínica especializada em fertilidade já que tantos anos tentando não seria normal. Seria um período para cuidar da minha saúde física e mental e que tudo ficaria bem. Fizemos uma viagem e lá decidi andar de bicicleta. Não fazia isso há mais de 15 anos. Neste dia meu coração disparou e fiquei com uma tremenda dificuldade para respirar. Novamente pensamos que fosse o sedentarismo, mas que posteriormente vimos que era um grande sinal do meu problema.

 

 

Em janeiro iniciei as pesquisas das clínicas, sabendo do alto custo envolvido gostaríamos que fosse uma clínica séria e com bons profissionais. Depois de muito pesquisar em grupos, blogs e por todos os cantos imagináveis, foi em março que tivemos nossa primeira consulta. Eu digo nossa porque meu marido sempre esteve comigo em todos os momentos, já que era um desejo nosso a gestação.

 

Diferente de tantos outros médicos que passei na vida, a médica que me atendeu realmente entendia o meu sofrimento e toda angústia gerada ao longo destes anos. Ela foi extremamente realista das possibilidades, principalmente por conta da idade. Sentimos muita confiança e iniciamos o tratamento. Para não perdermos mais tempo e sofrermos mais com todo o processo, pedimos que fizéssemos a Fertilização in vitro (FIV).

 

Antes de iniciar o tratamento realizamos diversos exames por conta da infertilidade e também para verificar como andava a minha saúde de uma forma geral. Meus exames de sangue não apresentaram nenhuma alteração. Recentemente tinha ido ao urologista, por conta das recorrentes pedras nos rins, mas que felizmente nada apresentou.  No cardiologista eu tinha ido no final do ano anterior como já contei para vocês.

 

Para quem não conhece o processo de Fertilização in vitro, a mulher recebe uma carga bem grande de hormônios. São hormônios injetáveis na barriga, além de outras medicações orais. Ao término desse processo, a mulher é sedada e os óvulos são retirados por uma punção e posteriormente fertilizados pelos espermatozoides em laboratório.

 

Nossos embriões foram congelados para que meu corpo pudesse ter um intervalo e reduzir a carga hormonal. E foi no dia 09 de agosto que fizemos a implantação do embrião. Pela minha idade poderíamos implantar 2 embriões, mas semanas antes do procedimento a médica me pediu para implantar somente 1 e concordamos já que confiamos em suas mãos a possibilidade de termos um filho.

 

Ansiosa que sou, no dia 16 já estava com o teste de farmácia em mãos desesperada para ver se resultado. Tantos anos esperando por aquela linha a mais que não me aguentava. E sim, desta vez ela estava lá! Eu não sabia se gritava ou chorava de tanta emoção. Quem já passou por isso sabe o que senti nesse momento. A infertilidade é uma doença que sofremos calados.

 

Seguimos extremamente felizes com tudo que estávamos vivendo. Apenas minha mãe soube durante o processo que estávamos fazendo uma FIV. Para meu pai contei no dia da implantação. Já meus sogros pensávamos em contar quando completasse 3 meses, mas não aguentamos e contamos bem antes. Estávamos tão radiantes que queríamos compartilhar com o mundo nossa alegria.

 

A médica que fez nossa FIV acabou virando a minha ginecologista e cuidou do pré-natal. Eu pedi muito para que ele nos ajudasse, já que foi tão difícil encontrar um médico que realmente cuidasse de mim e ela aceitou.

 

Ao longo das semanas o meu cansaço só aumentava e tinha um calor fora do normal. Sonhava em poder dormir dentro do ar-condicionado. Comentei com a médica e ela me orientou procurar um pneumologista porque algumas gestantes desenvolvem asma durante a gestação. Agendei uma consulta para a semana seguinte, mas no final daquela semana o cansaço estava demais. Assim, meu marido decidiu me levar em um hospital perto de casa. O cardiologista de lá me receitou fazer limpeza do nariz com soro já que meu problema era o ar seco. Voltamos para casa e nada do problema melhorar.

 

Na semana seguinte passei na pneumologista, ela ficou um tempão me escutando e me orientou procurar um cardiologista já que acreditava ser algum problema cardíaco. Era a primeira consulta que estava sozinha e as palavras da médica me deixaram um tanto assustada. Como a experiência no hospital havia sido frustrada, achei melhor buscar esses consultórios particulares que você agenda pelo site. Pelo menos conseguiria conversar com alguém no mesmo dia. Consegui um horário às 15h, em uma das clínicas perto de casa. Estava com medo por ser dia 31 de outubro, mesmo dia que fui a consulta ao psiquiatra no ano anterior. O médico que me examinou era um senhor que passou um tempo escutando meu coração De lá sai com uma carta de internação por insuficiência cardíaca. Novamente mais um susto. Liguei para o meu marido que foi prontamente me encontrar e seguimos para um hospital especializado em coração.

 

Chegando ao hospital a médica do PS achou um tanto de exagero do médico. Isso me tranquilizou demais. Fiz diversos exames e enquanto aguardava o resultado trocou o turno da equipe. O médico que deu sequência ao meu atendimento ao pegar os exames ficou admirado com a assertividade do encaminhamento médico. O que me marcou foi ele falar que se eu tivesse de 12 semanas teria que realizar um aborto já que o risco para a minha vida seria grande. Eu estava de 14! A voz do médico até hoje não sai da minha cabeça e lembrar desse momento me emociona demais. Na hora chorei tudo que você possa imaginar. Eu gritava para o meu marido não deixar ninguém tirar, que eu preferia morrer do que passar por aquilo. Foi um dos piores momentos, senão o pior, da minha vida.

 

Novamente dia 31 de outubro marcando minha vida, fui internada. Estava com o coração descompensado e pentear os cabelos era algo que cansava demais.  Nesse momento, diante de tudo isso agradecemos por termos implantado somente 1 embrião. Se a gestação fosse gemelar eu teria um desafio ainda maior pela frente. Os medicamentos eram limitados, assim como os exames por conta da gestação. Fiquei conhecida no hospital, isso me dava conforto porque eles estavam realmente tentando buscar o que fosse melhor para mim. Chegaram à conclusão que era necessário realizar uma ressonância com contraste para entender o quão afetado estava o meu órgão. No dia que eu estava aguardando para entrar na sala para a realização do exame, apareceu o médico falando que era contra já que tinha risco para o bebê. Novamente bateu aquele desespero. Voltei para o quarto e tive que aguardar uma nova data. Neste momento queria tanto que ele tivesse falado que a máquina estava quebrada. Ouvir aquilo tudo me deixou com mais medo.

 

E no dia 12 de novembro sigo para enfim realizar a ressonância magnética. Agora com o chefe da equipe. Ele me tranquilizou muito e nesse momento puderam ter uma visão melhor do meu problema. Eu estava com miocardiopatia dilatada do ventrículo esquerdo e minha fração de ejeção em 31. Isto significa que os ventrículos do coração não se contraem adequadamente durante cada batimento cardíaco de modo que o sangue não é adequadamente bombeado para fora do coração. Uma fração de ejeção normal é acima de 55. Eles precisavam entender se era um problema decorrente da gestação – miocardiopatia periparto, mas, não foi o caso. Eu devo ter pego algum vírus ao longo da vida que foi parar o coração. Não é uma condição comum, mas não chega ser algo raro. Hoje fala-se um pouco mais dessa doença porque algumas pessoas ficaram com essa sequela graças à infecção do Covid-19. Pelo menos nesse dia, meu aniversário, tive um momento de descontração em meio a tudo isso.

 

 

Ainda no hospital cortei meus cabelos para que eu mesma pudesse lavá-los, cada banho parecia uma maratona. Aprendi com tudo isso que teria que ter mais paciência e não teria controle de nada. Planejar algo, esquece! Teria que ir vivendo cada dia e vendo com as coisas iriam caminhando. Até o final da gestação eu teria que ficar quietinha na cama.

 

Em fevereiro o cansaço começou a ficar incontrolável. Era meu corpo sinalizando que estava no limite. Agendamos o parto para o dia 17/fev, mas tivemos que adiantar para o dia 15. Foi um parto com anestesia geral. Estávamos com muito medo e ao mesmo tempo acreditando que Deus não nos deixaria na mão nesse momento. Amigos e familiares estavam rezando muito por nós. Até a médica, mesmo sabendo que somos de religiões diferentes, mandou uma mensagem de um padre que estava rezando por este parto. Ela sabia do desafio que teria pela frente. Optamos por fazer em uma maternidade e ficamos confortáveis quando soubemos que a UTI de lá é formada por cardiologistas. A médica trabalhar na rede e conhecer muito bem a maternidade já havia deixado todos preparados para me receber. Meu marido disse que nunca tinha visto tanto médico reunido. E foi assim que nosso pequeno milagre nasceu. Estava com 29 semanas e pesando 1.530kg. Em parto com anestesia geral a criança deve ser tirada em 3 minutos, isso mesmo 3 minutos. Meu marido estava na sala do parto e desesperado com o tempo passando. Bom, ele acabou recebendo a anestesia e nasceu desacordado. De lá foi direto para a UTI Neo, onde permaneceu por longos 50 dias.

 

Miguel nasceu bem próximo ao carnaval, a cidade estava em festa e o Covid se instalando no país. Além de todo medo que tínhamos da UTI, tínhamos a questão do Covid que pouco se sabia e que até hoje pouco se sabe. Sou grupo de risco e na época puérpera. Fiquei 15 dias internada até regularem minha medicação e controlar meu coração. Nesse período fiz a minha primeira transfusão de sangue, experiência que nunca tinha passado. Eu só pude visitá-lo depois de 2 dias do parto. Que emoção, meu marido sempre fala que parecia cena de filme. Eu estava em uma cadeira de rodas e com um tubo de oxigênio. As enfermeiras tinham medo de que eu passasse mal pela emoção. Eu abaixei a cabeça e fui entrando pelo corredor da UTI. Comecei a olhar ao redor e via médicos, enfermeiros e pais com os olhos cheios de lágrimas. Abaixei minha cabeça e não via a hora de chegar na sala onde ele estava. Aquele corredor não parecia ter fim. Quando o vi pela primeira vez foi uma emoção incontrolável. Ele era tão pequeno! Estava com oxigênio, tomando banho de luz e repleto de sensores e sondas. Não sabia se ele tinha cabelo nem como seria seu rosto, mas ele estava ali. Algumas vezes ele esquecia de respirar, perdeu peso chegando a ter 1.300. Por isso que sempre falo longos 50 dias. Ser mãe de UTI é uma experiência muito marcante e ainda no início de uma pandemia foi mais forte ainda.

 

 

Eu não fiz um ensaio de gestante, que tanto sonhei e tenho somente uma foto grávida. Eu não fiz um chá de bebê ou um chá revelação. Eu não pude pegá-lo no colo quando nasceu e só pude vê-lo depois de alguns dias. Amamentar é algo que ficou bem distante da minha história.  Eu não pude fazer nada, mas estávamos bem, estamos aqui!

 

Eu aprendi tanto ao longo desse período. Tudo poderia ter sido tão diferente se eu tivesse encontrado mais médicos interessados ao longo da vida. Aprendi que a cardiologista que cuidou de mim no hospital e a GO responsável pela minha gestação são além de profissionais que guardo pra vida. Eu posso ter negligenciado e colocado em segundo plano coisas que são importantes pra vida, mas quem nunca fez. Conheço diversas pessoas que nunca foram a um cardiologista, pelo menos eu tentei.

 

Que em 2021 eu possa celebrar o dia 31 de outubro de uma forma diferente. Quem sabe fantasiar o Miguel para o Halloween e celebrar o aniversário da vovó, que nesses últimos anos não foram nada especiais. E que o dia 12 de novembro também tenha um bolo, distante de qualquer hospital já que é o meu aniversário.

 

Sigo em tratamento já que a insuficiência cardíaca gerada pela miocardiopatia não tem cura. São diversos medicamentos diariamente e uma sofrida restrição hídrica nestes dias de calor. Apesar de tudo isso agradeço diariamente por estar aqui.

 

E se me perguntasse se passaria por tudo isso novamente para ter um filho? Posso te dizer que foi um período de amplo aprendizado e amadurecimento pessoal. A vida é repleta de surpresas e nem sempre as coisas seguem como gostaríamos, mas tive a maior recompensa do mundo. O amor por um filho é um sentimento tão puro que é difícil descrevê-lo em palavras. Faria sim tudo novamente, mas buscaria outras opiniões médicas e não acreditaria fielmente em um desconhecido.

 

Enquanto eu ainda estava na UTI da maternidade fiz uma promessa a mim mesma que levaria a minha história para o máximo de pessoas possíveis. Compartilhando o que passei espero ajudar outras mulheres que sonham em ser mães, mas que talvez ainda não tenham encontrado os médicos certos.

 

Kelly Boeger Keiner | Publicitária

 

 

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